Não existem aliados permanentes, apenas poder permanente

Se nós não conseguirmos nos unir por acima das divisões ideológicas, nós estaremos cortando as nossas próprias gargantas

por Chris Hedges (pt-BR)

No próximo domingo, dia 19 de fevereiro, estarei ao meio-dia no Lincoln Memorial, em Washington, para falar na manifestação contra a guerra ‘Rage Against the War Machine’. Estarei lá junto com Jimmy Dore, Dennis Kucinich, Ann Wright, Jill Stein, Max Blumenthal, Cynthia McKinney, Anya Parampil, David Swanson e outros esquerdistas e ativistas contra a guerra. Também estarei junto com Ron Paul, Scott Horton e figuras libertárias e antiguerra de direita, cujas opiniões políticas e culturais eu frequentemente discordo. A inclusão da direita fez com que alguns grupos antiguerra que eu respeito, como os Veteranos pela Paz (VFP), se recusassem a juntar-se à manifestação. O VFP elaborou uma declaração que me foi enviada na sexta-feira, dizendo que “endossar este evento causaria uma enorme ruptura no VFP”. O conselho do Code Pink pediu a sua cofundadora, Medea Benjamin – uma das ativistas de esquerda e antiguerra mais importantes da nação –, que cancelasse a sua fala na manifestação.

“Na sua maior parte, a esquerda se tornou irrelevante nos EUA, porque ela é incapaz de trabalhar com a direita”, disse Nick Brana, presidente do Partido do Povo, que organizou a manifestação com os libertários. “Ela se apega à política identitária sobre empregos, cuidados de saúde, salários e a guerra, e condena como deploráveis a metade do país”.

Nós não derrubaremos apenas o poder corporativo e a máquina da guerra. Deve existir uma coalizão de esquerda que inclua pessoas cujas opiniões não só não são palatáveis, mas até repugnantes, ou senão permaneceremos marginalizados e ineficazes. Este é um fato da vida política. Alianças são construídas em torno de questões específicas – neste caso a guerra permanente – e muitas vezes se desfazem quando enfrentam outras preocupações. Se eu tivesse organizado a manifestação, há alguns oradores que eu não teria convidado. Mas eu não o fiz. Isto não significa que não haja linhas vermelhas. Eu não faria parte de um protesto que incluísse grupos neonazistas – como o ‘Aryan Nations’, ou milícias como ‘The Proud Boys’ ou os ‘Oath Keepers’.

O meu pai, que foi um pastor presbiteriano que serviu no norte da África durante a Segunda Guerra Mundial, era membro da organização Clérigos e Laicos Preocupados com o Vietname, um grupo antiguerra que incluía padres católicos radicais como Philip e Daniel Berrigan. Ele me levou às manifestações antiguerra, junto com outros clérigos, quase todos veteranos de guerra. Havia muitas coisas no movimento antiguerra às quais ele e outros membros do grupo religioso se opunham, desde os Yippies – que lançaram como candidato à presidência em 1968 um porco de mais de 65 quilos, chamado de ‘Pigasus o Imortal’ – até grupos como o ‘Weather Underground’, que encampavam a violência. Ele e os outros clérigos rejeitavam o uso muito difundido de drogas e a propensão de alguns manifestantes de insultar e provocar a polícia. Eles tinham pouca coisa em comum com os maoístas, stalinistas, leninistas e trotskistas que faziam parte do movimento. Daniel Berrigan, um dos mais importantes ativistas antiguerra da história estadunidense, que estava constantemente entrando e saindo da prisão, e passou dois anos numa penitenciária federal, se opunha ao aborto – uma posição que provavelmente o retiraria das plataformas por muitos esquerdistas hoje em dia. Estes clérigos entendiam que os mestres da guerra eram os seus verdadeiros inimigos. Eles compreendiam que o sucesso do movimento antiguerra significava formar alianças com pessoas cujas ideologias e crenças estavam muito afastadas do pacifismo e dos estilos abstêmios e da fé cristã. Quando eu tinha uns 12 anos de idade, meu pai me disse que se a guerra ainda estivesse em andamento quando eu completasse 18 anos e eu fosse convocado, ele iria para a prisão comigo. A surpresa daquela promessa permaneceu comigo para a minha vida inteira.

Eu compartilho as demandas da manifestação. Estas incluem Nem Um Centavo a Mais para a Guerra na Ucrânia; Parem com a Inflação de Guerra; Dissolvam a Otan; Desescalada Nuclear Globa; Cortar o Orçamento do Pentágono; Abolição da CIA e do Estado profundo Militar-Industrial; Abolir a Guerra e o Império; e Libertem Julian Assange

Eu conheço a guerra. Eu passei duas décadas reportando sobre conflitos no mundo inteiro, incluindo muitos meses em Gaza – a maior prisão a céu descoberto do mundo, contendo dois milhões de pessoas, incluindo um milhão de crianças. Eu vi milhares de vidas humanas sendo destruídas pelo aventurismo militar dos EUA na América Central, na África e no Oriente Médio. Dezenas de pessoas que eu conheci e com quem eu trabalhei tiveram mortes violentas – incluindo Kurt Schork, um repórter da Agência Reuters e o cinegrafista espanhol Miguel Gil Moreno de Mora.

Nós devemos parar com as décadas de matanças industriais desenfreadas e fúteis. Isto inclui acabar com a guerra por procuração na Ucrânia. Isto inclui fazer cortes drásticos no financiamento da máquina de guerra dos EUA. Isso inclui a dissolução da Otan, estabelecida para evitar a expansão soviética na Europa Oriental e Central, não para fazer guerras no globo inteiro. Se as promessas ocidentais feitas a Moscou de não expandir a Otan para além das fronteiras da Alemanha unificada tivessem sido cumpridas, eu suponho que a guerra ucraniana jamais teria acontecido.

Para aqueles que sofrem diretamente com a agressão estadunidense, estas demandas não são questões acadêmicas, nem teóricas. As vítimas deste militarismo não se dão ao luxo de fazer sinais virtuosos. Elas querem que o estado de direito seja restaurado e que a matança cesse. Eu também. Elas dão as boas-vindas a qualquer aliado que se oponha à guerra sem fim. Para elas, esta é uma questão de vida ou morte. Se alguns direitistas são contra a guerra, se eles também querem libertar Julian Assange, não faz sentido ignorá-las. Estas são questões existenciais urgentes, as quais, se não nos mobilizarmos logo, poderão ver-nos escorregar em um confronto direto com a Rússia e, talvez, com a China, o que poderá conduzir a uma guerra nuclear.

O Partido Democrata, juntamente com a maioria do Partido Republicano, são escravos do militarismo. A cada ano, o Congresso aumenta o orçamento para a indústria da guerra, incluindo o do ano fiscal de 2023. Eles aprovaram US$ 847 bilhões para os militares – um total que é aumentado para US$ 858 bilhões quando são incluídas contas que não estão sob a jurisdição do Comitê das Forças Armadas do Congresso. Os Democratas, incluindo quase todos os 100 membros da Facção Progressista da Câmara dos Representantes, e os Republicanos, servilmente dão ao Pentágono tudo o que este demanda.

A manifestação de 19 de fevereiro não é sobre a eliminação da Segurança Social e da Saúde Universal, nem abolir o salário mínimo – que é algo que muitos libertários propõem. Esta não é uma manifestação para denunciar os direitos da comunidade LGBTQ, que foi atacada por pelo menos um dos oradores. Esta é uma manifestação para acabar com a guerra permanente. Caso estes participantes de direita se organizem em torno de outras questões, eu estarei do outro lado das barricadas.

“Eu apoiei a manifestação do Rage Against the War Machine desde o tempo da sua concepção e eu a apoio até hoje, mas eu não serei uma das oradoras, porque a organização à qual eu sou associada há 20 anos, Code Pink, me conclamou a não falar”, me disse Medea Benjamin num email. “A equipe do Code Pink sentiu que a minha participação causaria danos à posição do grupo com relação a outras coalizões compromissadas com direitos de gays, direitos das mulheres e o antirracismo. Eles sentiram que Jackson Hinkle assumiu posições que são antigay, antitrans, antifeministas e islamofóbicas, e eles estão preocupados com o patrocínio do ‘Mises Caucus’ do Partido Libertário, o qual, segundo o ‘Southern Poverty Law Center’, tem ligações com nacionalistas brancos”.

“Sendo assim, por que eu apoio a manifestação?”, ela pergunta. “Porque me parte o coração ver uma guerra que está causando tantas mortes e destruição na Ucrânia. Porque eu temo de verdade que esta guerra possa nos levar à Terceira Guerra Mundial, ou a um confronto nuclear. Porque ambos os partidos políticos são cúmplices em dar US$ 100 bilhões para a Ucrânia, para continuar esta guerra. Porque o governo Biden está empurrando esta guerra para enfraquecer e Rússia, ao invés de promover soluções. Porque nós necessitamos urgentemente de quantas vozes sejam possíveis, a partir de uma ampla variedade de perspectivas, para falar alto, para que possamos ser mais eficazes em pressionar o Congresso e a Casa Branca para levar este conflito do sangrento campo de batalha para a mesa de negociações. O futuro do nosso mundo está na balança”.

Medea Benjamin disse que, apesar de não falar, estará na manifestação, “torcendo pelos oradores” e ela está planejando fazer lobby um dia ou dois depois, em 21 de fevereiro, por aqueles que queiram levar a sua mensagem antiguerra diretamente aos escritórios do Congresso.

Ralph Nader, que recém fundou o jornal ‘Capitol Hill Citizen’, uma publicação focada no Congresso, há muito tempo defende uma coalizão de esquerda como o único mecanismo eficaz para empurrar para trás o poder corporativo. Ele argumenta que aqueles na esquerda que se recusem a fazer parte das alianças estão se engajando em uma “autoimolação”. Esta recusa, diz ele, promove a paralisia política – não muito diferente da paralisia frente à caça às bruxas do Senador Joseph McCarthy nos anos 1950 contra supostos comunistas. Apesar de muitos detestarem McCarthy, o establishment republicano se recusou a unir forças com os liberais e os democratas para acabar com as calúnias, as listas negras e as prisões de dissidentes. A coalizão de esquerda é especialmente importante para reconstruir os sindicatos, assinala Nader. Ela é o único mecanismo capaz de aleijar a oligarquia dominante. Se nós não conseguirmos nos unir por acima das divisões ideológicas, nós estaremos cortando as nossas próprias gargantas.

“Uma aliança de esquerda sobre uma questão após a outra, seja um salário decente, acabar com as infindáveis guerras de agressão dos EUA,  seja para golpear pesadamente os crimes corporativos, seja o seguro de saúde universal, este é um movimento imbatível”, Nader me disse quando eu consegui falar com ele por telefone. “Pense só sobre um senador recebendo dez constituintes da sua terra natal, sendo cinco liberais e cinco conservadores. Como será que o senador os tratará? Como será que o senador os enganará? Isso é muito difícil. Em qualquer momento no qual há uma aliança de esquerda – como há 30 anos, na promulgação do Ato Federal de Falsas Reinvindicações para investigar fraudes corporativas em programas e contratos governamentais, esta é uma combinação imbatível”.

Patrocinadas por líderes Republicanos e Democratas, as emendas ao Ato De Falsas Reivindicações de 1986 foram usadas pelo governo federal para recuperar mais de US$ 62 bilhões de fraudes e má administração roubados por corporações com contratos governamentais.

“Se você quiser prevalecer no Congresso para fazer cumprir os deveres deles segundo a Constituição e jamais engajarem-se em guerras, ou tornarem-se cobeligerantes sem uma declaração de guerra do Congresso – a última guerra que foi declarada pelo Congresso foi a Segunda Guerra Mundial e nós [os EUA] nos engajamos em muitas guerras desde então e continuamos a fazê-lo – precisamos ter uma coalizão de esquerda”, disse Nader. Devido ao fato de não haver uma coalizão no Congresso, tanto os Republicanos quanto os Democratas são sócios partidos da guerra. Eles apoiam um orçamento do Pentágono que dá aos generais mais do que eles pediram. Eles têm feito isso por quase oito anos seguidos; mais recentemente, eles deram ao Pentágono US$ 48 bilhões a mais do que os generais e o presidente Biden requisitaram, ao invés de dar este dinheiro para a saúde pública e para evitar a pandemia, a morte, os ferimentos e as doenças”.

Quem pagará o preço mais alto por esta paralisia são os que morrem, os feridos ou deslocados das suas casas pela máquina de guerra, incluindo mais de 900.000 civis mortos diretamente e milhões indiretamente, como resultado das guerras após o ataques de 11 de setembro de 2001 contra as torres-gêmeas em Nova York – no Iraque, no Afeganistão, no Iêmen, na Síria, na Líbia, na Somália e no Paquistão. Porém, a esquerda, mesmerizada por um ativismo autodestrutivo de boutique, também paga um preço. A miopia é um presente para os oligarcas, os militaristas e os fascistas cristãos que nós devemos derrotar.

Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

Chris Hedgesrepórter laureado com Prémio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas correspondente no exterior do The New York Times. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America o best-seller (New York Times), Days of Destruction, Days of Revolt (2012), do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.

Artigo original publicado no The Chris Hedges Report a 12 de fevereiro, 2023.

Fonte: Brasil 247

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