O abuso do conceito de “populismo”

por Prabhat Patnaik (PT)

Todos os regimes baseados em antagonismos de classe requerem um discurso para legitimar a opressão de classe e este discurso, por sua vez, requer um vocabulário próprio. O regime neoliberal também desenvolveu o seu próprio discurso e vocabulário e um conceito chave neste vocabulário é o “populismo”. A este conceito é dada grande difusão pelos media, os quais são povoados por membros da classe média alta que têm sido grandes beneficiários do regime neoliberal e que, portanto, desenvolveram um interesse declarado na sua continuação. Tão difundido é o alcance deste conceito que mesmo membros bem intencionados e progressistas dos literati foram vítimas do seu abuso e empregam o termo com a conotação pejorativa que lhe é tipicamente transmitida pelos media de propriedade corporativa.

O termo “populismo”, evidentemente, não é uma invenção da intelligentsia neoliberal. Ele foi utilizado muito antes, mas com um significado muito diferente do que lhe é atribuído agora. Os Narodniks russos, por exemplo, foram chamados “populistas” pelos marxistas russos, incluindo Lenine, mas o termo foi utilizado para denotar o facto de os Narodniks não fazerem distinções de classe dentro da massa a que indiscriminadamente chamavam “povo”. A ideia não era desacreditar o uso do termo “povo”, pois o próprio Lenine usou o termo “povo trabalhador” para denotar trabalhadores e camponeses; era evitar o apagamento de distinções entre eles as quais precisavam de ser traçadas teoricamente. Sob o neoliberalismo, contudo, o termo é utilizado para referir-se a qualquer apelo feito a qualquer segmento do povo trabalhador, quer para os mobilizar por motivos de chauvinismo religioso, quer através de transferências orçamentais para ele.

Portanto, o termo “populismo” no seu uso atual abrange tanto apelos fascistas como semi-fascistas ao povo sobre questões que camuflam deliberadamente a sua opressão, bem como todas as tentativas de assegurar-lhe alguns ganhos para aliviar a sua opressão. O primeiro é por vezes chamado “populismo de direita”, enquanto o segundo é chamado “populismo de esquerda”. A ofuscação ideológica é aqui óbvia:   além de não não exisire uma perspectiva de classe por detrás do uso do termo, ao tratar tanto o populismo “de esquerda” como o populismo “de direita” como tendências pouco saudáveis há um privilegiamento do “meio termo”, ou seja, uma posição burguesa liberal como a única “sensata”. Um conceito utilizado numa crítica teórica rigorosa em relação à cognição de uma entidade de massa, como era o caso dos marxistas russos, foi agora convertido numa apoteose da posição burguesa liberal.

Este não é apenas um caso de ofuscação; é também positivamente enganoso. A marca das posições fascistas, neo-fascistas e semi-fascistas que são rotuladas de populismo de “direita” é que não têm nada a oferecer em termos de benefícios económicos para as massas. Em contraste, o chamado populismo de “esquerda” exige medidas do Estado social e, pelo menos, transferências económicas para o povo. Ao colocar os dois em pé de igualdade e ao desmascarar o “populismo” em geral, o discurso dominante desmascara essencialmente todas as transferências económicas para o povo. Avança, portanto, uma posição segundo a qual quaisquer concessões económicas feitas ao povo devem ser evitadas e que o governo deve concentrar-se inteiramente no crescimento do PIB. Uma vez que as transferências para o povo se alimentam de recursos que poderiam ter sido utilizados para fazer investimentos que teriam acelerado o crescimento, tais transferências são um desperdício, feito sob coação apenas por causa de compulsões eleitorais, mas totalmente insensato. Uma extensão desta lógica é o argumento de que qualquer tentativa por parte do governo de reduzir a desigualdade económica na sociedade é também insensata.

Este discurso está perfeitamente de acordo com um regime neoliberal. Antes da sua introdução, ninguém críticaria se uma agenda de redução da desigualdade e eliminação da pobreza tivesse sido avançada. De facto, Indira Gandhi ganhou uma eleição com o slogan de Garibi Hatao ; claro que não o fez, mas a crítica contra ela não foi por ter avançado o slogan e sim por não cumpri-lo. Amartya Sen havia argumentado há muito que consagrar apenas 5% do PIB eliminaria a pobreza na Índia e que o país deveria fazê-lo renunciando ao consumo total num montante igual a apenas um ano de crescimento do PIB (que era então cerca de 5% por ano). A redução da desigualdade e a eliminação da pobreza eram assim consideradas tarefas primárias para a economia durante o período dirigista; mas agora já não, apesar de ter havido um aumento maciço da desigualdade de rendimento e riqueza sob o regime neoliberal. E o recurso à utilização pejorativa do termo “populismo” é um meio de desmascarar todas essas exigências de maior igualitarismo, uma arma ideológica nas mãos do capital corporativo e da florescente classe média alta a fim de deitar abaixo todas as propostas de transferências económicas para os pobres.

Dar prioridade ao crescimento económico sempre foi uma característica da economia burguesa, mas com uma diferença. Adam Smith havia defendido a eliminação da interferência estatal que, acreditava ele, impedia o crescimento económico, embora soubesse perfeitamente que os benefícios deste crescimento não chegariam à classe trabalhadora. Na sua opinião, um aumento da riqueza da nação era um objetivo importante per se; onde diferia dos seus antecessores era na argumentação de que esta riqueza não consistia na aquisição de ouro e prata, mas na acumulação de stock de capital que pudesse ser utilizado para produzir bens. David Ricardo também era a favor da acumulação de stock de capital e, consequentemente, do crescimento da produção, apesar de saber que havia um limite para essa acumulação. (Na verdade, Karl Marx havia elogiado Ricardo por defender a acumulação, muito embora este último acreditasse que tal acumulação encontraria um beco sem saída quando o chamado estado estacionário fosse atingido). Ricardo também acreditava que a classe trabalhadora não seria beneficiada por tal acumulação.

A razão porque tanto Smith como Ricardo pensavam que a classe trabalhadora não seria beneficiada por tal acumulação é que qualquer melhoria no seu estado tendia a provocar um aumento da sua população. A única forma de os trabalhadores poderem beneficiar da acumulação de capital era, portanto, se restringissem a sua propensão para a procriação. Mas essa era uma questão que só eles podiam influenciar, embora os economistas clássicos fossem a favor de se tornarem melhores através da restrição do crescimento da sua população. A defesa clássica do crescimento, no entanto, era independente de os trabalhadores beneficiarem ou não disso.

A atual advocacia do crescimento é diferente. Ninguém hoje acredita que as condições dos trabalhadores são miseráveis porque procriam demasiado; ninguém acredita que as suas condições não possam ser melhoradas através dos esforços do Estado, provocando transferências de rendimentos em seu favor. E no entanto tais transferências tendem a ser evitadas pelos economistas burgueses neoliberais com o argumento de que poriam em risco o crescimento económico. A defesa clássica do crescimento é assumida pelos neoliberais modernos, mas sem a simpatia dos economistas clássicos pela classe trabalhadora. Assim, a animosidade da classe burguesa contra a classe trabalhadora agora reflete-se também nas atitudes dos economistas.

A ênfase no crescimento, com exclusão das transferências económicas para os pobres, que são escarnecidas como “medidas populistas”, é duplamente ofensiva para os pobres. Por um lado, impede uma melhoria do seu nível de vida que poderia ter sido alcançada se as transferências se tivessem verificado; por outro lado, a busca do crescimento envolve invariavelmente uma série de projetos que implicam a expulsão de camponeses e trabalhadores da terra que cultivam, e de pessoas em geral dos seus habitats, o que as deixa ainda piores do que estavam no começo. É verdade que é criado emprego em tais projetos e também em atividades a jusante por eles criadas. Mas os deslocados dificilmente são os beneficiários de tal geração de emprego e mesmo o emprego que é criado muitas vezes fica aquém do emprego que é destruído. E a reabilitação das pessoas deslocadas que é prometida quando o projeto é empreendido quase nunca é realizada. Se o crescimento estivesse a ser efetuado sob a égide de coletivos das próprias pessoas, através, por exemplo, dos próprios coletivos camponeses que iniciam projetos industriais, então as coisas seriam diferentes. Mas não é assim que o crescimento se verifica sob o capitalismo.

O menosprezo das medidas de Estado social (welfare state), quando elas são referidas pejorativamente como “populistas”, e a ênfase no crescimento do PIB como objetivo exclusivo da política de Estado, são cinicamente anti-populares. Mas essa é a marca do neoliberalismo.

Tradução de JF

Prabhat Patnaik (Jatani, em Orissa, setembro de 1945) é um economista marxista e comentarista político indiano. Lecionou no Centro de Estudos de Economia e Planeamento da Escola de Ciências Sociais da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Delhi, de 1974 e até sua aposentadoria em 2010 ele foi o Vice-Presidente do Conselho de Planeamento do estado indiano de Kerala a partir de junho de 2006 a maio de 2011.

Artigo original publicado no Peoples Democracy a 22 de janeiro, 2023.

Fonte: Resistir.info

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